quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O FEITIÇO DO ÍNDICO



         
              Ao entardecer, nessa hora dos mágicos eventos, Maria Nampula caminhava pela fina areia branca da praia de Fernão Veloso. O seu andar era uma valsa abrilhantada pelo trinar das aves e o rebentar das ondas que estendiam um manto rendilhado a seus pés.
              Mulher alta, com porte de gazela, a sua pele da cor do chocolate  contrastava vivamente com as duas esmeraldas que trazia no olhar.
              Os pés eram finos e compridos, quais pés de Cristo, e marcavam um passo suave mas decidido. Inabalável. Como inabalável se revelara o diagnóstico que, numa tarde fria de Junho, lhe havia sido arremessado: carcinoma ductal invasivo, que requereria uma mastectomia radical modificada e um cortejo de terapias adjuvantes: quimioterapia, radioterapia e hormonoterapia, das quais se mantinha esta última, que consistia na ingestão diária de um comprimido de “Tamoxan" 20.
               Após a ablação do seio esquerdo, continuava linda, com uma elegância que não passava despercebida em parte alguma, e enquanto não era chegada a hora de se submeter a uma mamaplastia, a falta anatómica era sábia e suavemente disfarçada com uma prótese de silicone introduzida na bolsa da copa do soutien, prótese essa cujo peso e volume eram muito próximos dos do seio que Deus lhe tinha permitido conservar.
               Olhou para lá da linha do horizonte. Uma lágrima teimosa soltou-se das esmeraldas que trazia no olhar e deslizou como um fio de prata pelo seu rosto, tornando ainda mais brilhante a expressão do seu olhar.
               Um ano antes, um neurocirurgião paquistanês chegado ao Maputo para coordenar uma série de acções de formação sobre o aneurisma intracraniano, tinha-lhe sido apresentado num cocktail na Ilha de Inhaca e depressa se convertera no seu amigo de eleição e confidente e, depois, no seu noivo e amante. Tinha sido ele quem lhe tinha dado alento nessa fase difícil, fazendo-a emergir dos destroços em que a doença a prostrara.
                Na véspera da festa em que iria pedir a sua mão, sucumbira às mãos de um acidente vascular cerebral.
                Havia dois meses e, desde então, ela vestia a alma de luto, mesmo quando, como naquela tarde, envergava um vestido de cor encarnada, o preferido dele.
               Recordou uma vez mais, e outra, e outra ainda, e mais outra, a pele dele da cor da canela, com cheiro a âmbar, o corpo musculado, as gargalhadas vigorosas que dele se desprendiam, as mãos com que a afagava. Aquele olhar penetrante que colocava o corpo dela ao rubro num frémito de desejo.
                Todos os dias, ao fim da tarde, ela caminhava na fina areia branca da Praia de Fernão Veloso e banhava-se no Índico, pois acreditava que a força viva das águas onde, àquela mesma hora, ele a abraçara e beijara vezes sem conta, haveria de o trazer de volta.
                Naquele final de tarde, avançou mar adentro, atraída por um chamamento divino. Da crista de uma onda emergiu um cavalo alado branco montado por um musculado homem moreno que, com o olhar inundado de embevecimento, avançou na direcção de Maria Nampula, tomou-lhe suavemente a mão e sentou-a no seu colo,  afagando-a e beijando-a sempre. Dela emanava um sorriso de inexcedível felicidade, e, ao som de uma melodia cantada por querubins, o cavalo correu sobre as águas, até que desapareceu para lá da linha do horizonte, deixando atrás de si um raio de luz e uma abóbada de estrelas.
                  No dia seguinte, quando o corpo da mulher deu à praia, “Carapinha Tonta”, o rapazinho com oligofrenia moderada que, em cada final de tarde, se sentava na praia só para ver passar Maria Nampula, contou aos orgãos de polícia criminal e à comunicação social que a mulher tinha corrido mar adentro até desaparecer para todo o sempre no âmago de uma onda mais violenta.
                  Quando lhe perguntaram porque é que não tinha ido buscar socorros na hora, respondeu que não tinha conseguido desviar o olhar de um raio de luz e de uma abóbada de estrelas que se tinham desprendido das águas no momento do desaparecimento dela, e que esse raio de luz, num primeiro momento, o encandeara, para, logo de seguida, o hipnotizar e lhe paralisar as pernas, só tendo voltado a conseguir andar ao acordar, na manhã seguinte, com as ondas a lavarem-lhe os pés e o sorriso dela a quebrar, por alguns instantes, a linha do horizonte.                 
                    É por isso que ainda hoje, ao fim da tarde, na praia de Fernão Veloso, os turistas gostam de se sentar na fina areia branca, com o mar a cantar a seus pés, a apreciar o raio de luz e a catadupa de estrelas que, lá muito ao longe, junto da linha do horizonte, se desprende das águas. É nessa altura que, diz-se, o neurocirurgião paquistanês vem buscar Maria Nampula e ambos se fundem numa só vibração de alma, da qual emergem as estrelas que são um regalo para os turistas. É também nesses finais de tarde que “Carapinha Tonta” recolhe moedas de turistas ávidos de histórias de encantar, em troca do seu depoimento privilegiado de testemunha presencial da última passagem de Maria Nampula na Praia de Fernão Veloso e da sua fusão, num final de tarde, com o neurocirurgião paquistanês que voltou só para a vir buscar. 


                                      Reedição de um texto meu outrora publicado neste blog.
                                             Registo fotográfico de um quadro que é uma aquisição minha e que está assinado por Y. Demi.