terça-feira, 13 de novembro de 2012

MÃE CLARA



                                       


                No pretérito dia 1 de Novembro, dia de Todos os Santos, desloquei-me ao cemitério para prestar homenagem aos que já partiram.

                E recordei-me do dia em que ali tínhamos ido acompanhar a minha sogra à sua última morada.

                Para a missa de corpo presente, tinha escrito algumas palavras de derradeira homenagem:
             

                “Hoje o céu está em festa com a chegada de uma Mulher plena de bondade. E também está mais estrelado, mercê da felicidade do reencontro de dois seres magníficos, aos quais, nesta Terra, foi dado viver, durante  mais de 60 anos, uma linda história de amor, que, agora, se eterniza.

              Senhora de um coração enorme, a transbordar de generosidade e amor ao próximo, e dona de um poder de resignação ímpar e de uma inexcedível capacidade de perdão, Mãe Clara foi convocada por Deus, que, assim, a libertou do sofrimento só nesta vida consentido.

              O facto de A sabermos, agora, sentada à direita de Deus Pai Todo Poderoso, solta das amarras da dor da separação do Seu Amado Esposo e dos entes mais queridos que lhe tinham levado a dianteira, deve encher-nos de júbilo e confortar-nos, transformando as lágrimas de dilacerante dor dos seus filhos em lágrimas de incontida alegria.

               Estou certa que, boa Mãe como sempre foi, iluminará, agora, do alto dos céus, o trilho de cada um dos seus filhos e netos.

               Bem haja, Mãe Clara, por tudo! E tudo foi tanto! Que todas as constelações do firmamento brilhem sempre por Si e para Si! Que todos os Anjos e Santos aconcheguem sempre a Sua Alma com um manto de Luz Divina!

               E perdoai-me, Senhor, por nunca ter tido capacidade para ofertar a este espírito de luz, a devida atenção e o carinho merecido.”
 

               Antes da missa, dirigi-me, na companhia do meu marido, à sacristia, a fim de pedirmos ao celebrante que me concedesse autorização para, durante a missa, ler aquelas breves palavras.

              O Sr. Cónego respondeu categoricamente:

                - Não! Isso não! Liturgia é uma coisa, sentimentos pessoais é outra! Durante a missa, não!

                O meu marido ainda sugeriu:

                 - Talvez no cemitério, durante a cerimónia religiosa…

                 Irredutível, o Sr. Cónego negou, uma vez mais, e sugeriu que o texto fosse lido, no cemitério, fora da cerimónia religiosa, depois do seu encerramento.

                 Sem alternativa, no cemitério, findo o ritual religioso, o  celebrante já de costas, comecei a ler.

                 Confesso que a leitura naquelas circunstâncias perdeu muito do seu verdadeiro sentido e da sua riqueza espiritual, na medida em que,   naquela ocasião, o representante de Deus na Terra já tinha deixado os seus fieis, que ali se haviam reunido precisamente com a finalidade de a sua voz ser por Ele ouvida. 

                Então, não é verdade que os fieis estavam reunidos, em comunhão com Deus, representado pelo sacerdote?

                 E também não é verdade que aquela reunião só fazia sentido porque todos os fieis acreditavam que Deus os estava a ouvir?

                  Não sei como se passam as coisas nas outras igrejas católicas espalhadas pelo mundo, mas têm-me chegado sentidos relatos de pessoas que estiveram presentes noutras cerimónias fúnebres, em igrejas católicas de Portugal, onde foram lidos trechos de homenagem ao defunto, escritos por familiares e amigos, sendo-me, concomitantemente, transmitido apreço por tais manifestações públicas.

                    Sendo a Missa ou Celebração da Eucaristia a principal celebração religiosa da Igreja Católica, o ponto máximo da comunhão dos fieis com Deus, entendo que as palavras de homenagem à minha sogra se enquadravam perfeitamente naquela missa em que o celebrante rogava a Deus pela sua alma.

                  E naquele dia de despedida da minha sogra, fiquei a pensar se não seria já altura de todos os elementos do Clero, sem excepção, mostrarem maior abertura na celebração dos actos litúrgicos, numa atitude que Cristo saudaria.

                 O que, na ocasião, me afagou a alma, foi ter tido a certeza absoluta de que, se eu tivesse pedido a Cristo autorização para ler o texto na missa, ele teria, sem qualquer hesitação, e com um sorriso inundado de luz divina, respondido que sim.

               
                                                                       Texto e fotografia da Isabel Maria.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

I´M FEELING GOD, MAM






                                            
"À sombra de um templo o meu melhor amigo e eu vimos um cego sentado e solitário.

O meu amigo disse: "Olha que esse é o homem mais sábio da nossa terra." Então, aproximei-me do cego e começámos a falar. Pouco tempo depois disse-lhe: "Desculpa a pergunta, mas há quanto tempo estás cego?"

Ele respondeu: "Desde que nasci."

"E qual o caminho da sabedoria que escolheste?"

"Sou astrónomo."

Em seguida levou a mão ao peito e acrescentou:

"Observo todos estes sóis, estas luas e estrelas."
       
                                                                  Khalil Gibran,   "O Astrónomo" , in "O Louco", p. 67 - Padrões Culturais Editora - 2011.



                  Ao ler ontem este texto de Khalil Gibran, veio-me imediatamente à memória a visita que fiz na última Páscoa, à "Grossmünster" ("Grande Catedral"), em Zürich, na Zwingliplatz, na margem leste do Rio Limmat.

                 Trata-se de uma basílica românico-gótica, cujas altas torres gémeas dominam a cidade, e onde apraz registar o portal românico com uma porta de bronze, e os vitrais executados por  Augusto Giacometti.

                E recordei-me desta basílica, porque, em frente da mesma, existe uma réplica da sua parte exterior, para invisuais. Quando saí da basílica, aproximei-me da réplica e vi um senhor invisual numa cadeira de rodas, tacteando a mesma, enquanto os seus olhos percorriam o céu de Zürich com uma inaudita satisfação.

              Não resisti a tocar-lhe ao de leve no braço e a perguntar-lhe em alemão, o que estava a sentir.

            Quando ele me disse, no seu inglês americano, que não falava alemão, repeti a pergunta em inglês:  "I do apologize for disturbing you, but I can´t resist asking you what you´re feeling while you´re groping this replica."

              Com uma luz divina a iluminar o seu sorriso, respondeu-me: "You´re not disturbing me by any means, Mam. It´s a pleasure to answer your question: I´m seeing the sky and I´m feeling God, Mam!"                 

                  

                                       Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa, com fotos da autora, relativas à Grossmünster. (Na 1ª, uma perspectiva do exterior da mesma, na 2ª, os vitrais de Augusto Giacometti, na 3ª, um pormenor da porta de bronze, e na 4ª, a réplica para invisuais.)
     

terça-feira, 3 de julho de 2012

CAPULANA MÁGICA




                      
                  Todas as noites se acende uma festa no firmamento de África. E nessa festa tropical, há uma constelação que brilha mais intensamente do que todas as outras: é o feitiço de África. Porque África é uma deusa de luz, prenhe de luz.  Luz gerada pelas acções das pessoas boas que amam África.

                  Há uns dias, numa reunião de trabalho de uma actividade extra-curricular, uma companheira - a Lucília, soube da minha paixão por Moçambique e do meu gosto pelas suas capulanas.

                  No final da sessão seguinte, ela, que também ama Moçambique, disse-me que tinha uma oferta para mim e entregou-me uma capulana daquele país.  Ao pegar na capulana, ouvi a chuva copiosa cair com raiva e fecundar a terra em brasa e senti vontade de dançar uma valsa africana, acompanhada pelo mistério, nunca desvendado, da percussão de um tambor na noite estrelada, abrilhantada pela cantata perfumada do Índico. Vi os querubins correndo descalços nos mangais da Zambézia, os meus pais, na idade da imortalidade, passeando na ilha de Inhaca. Ouvi os flamingos de plumagem flamejante pedir-me que volte, que volte, que volte...

                  A capulana semeou constelações no firmamento de África, acendendo uma festa tropical! E Moçambique inteiro afagou o meu coração.

                     Muito obrigada, minha querida Lucília.
 
                                                                                              
                                                                                              Isabel Maria

                                                                    O registo fotográfico é da capulana ofertada pela Lucília.

domingo, 10 de junho de 2012

AS PALAVRAS DE MICHELLE OU O ABRAÇO DE PEDRO



              Há momentos catapultados para a eternidade.

              Vem isto a propósito de uma reunião de trabalho de uma actividade extra-curricular, ocorrida há uns meses, na qual participei. No início dos trabalhos, cada um dos presentes apresentou-se abrindo o seu coração e contando as suas alegrias, as suas preocupações e as suas expectativas.

              Quando usei da palavra, relatei que tinha sido assolada por um carcinoma ductal invasivo há 9 anos e que tinha medo de uma recidiva, mas logo asseverei que era uma mulher forte e que tudo iria correr bem comigo.

              Quando terminei, ouvi a tua voz, Pedro:

             - Força, Isabel! Força!

             Logo de seguida, tu, Michelle, sentada ao meu lado, aproximaste-te de mim e deste-me um abraço do tamanho do mundo.

             E o vosso afago, Pedro e Michelle, agasalhou o meu coração. Ouvi as palavras  que tu, Michelle, me disseste, sem dizeres, e senti o abraço que tu, Pedro, me deste sem dares.

             São palavras e gestos como estes que fazem com que, em cada aurora, o sol nascente  desenhe um sorriso no nosso coração. São palavras e gestos como estes que, à noite, acendem as estrelas do firmamento.

             Bem hajas, Michele. Bem hajas, Pedro. E que as constelações que vocês acenderam naquela noite, iluminem sempre o vosso trilho.

                                                                                                      Isabel Maria

domingo, 18 de março de 2012

O ABRAÇO DE ÁFRICA

                   
                                      

              Há cerca de três anos, comecei a ouvir, online e em directo, estações de rádio do Maputo. Uma dessas estações emissoras é a "Rádio Moçambique - Antena Nacional", de cuja grelha faz parte um programa de músicas moçambicanas pedidas e dedicadas, via telefónica, pelos ouvintes, no qual gosto de participar.

              Quando comecei a ser ouvinte desse programa, entre os funcionários que faziam a triagem dos ouvintes antes de estes entrarem no ar, contava-se Carmina Tete.

              Quando me recebeu pela primeira vez, deu-me as boas vindas com uma voz tão alegre, que logo me cativou. Conversámos durante uns breves instantes, até que ela me disse: "Vai entrar no ar agora."

              Na vez seguinte em que fui por ela acolhida, ouvi-a exclamar, entusiasmada, do lado de lá: "Olha! É ela!" E a espontaneidade, a jovialidade, a alegria e o afecto com que ela pronunciou estas palavras, fizeram-me gostar ainda mais dela.

              Nesse dia, adoptámos como saudação um grito de alegria emitido por cada uma de nós. E, desde então, cada vez que nos cumprimentávamos, um raio de luz partia do Maputo, trespassava Moçambique, afagando à sua passagem as cores, os cheiros e os sons da savana moçambicana, transportando-os até Portugal, ao mesmo tempo que um outro raio de luz partia deste cantinho da Europa, imbuído com todo o meu amor por Moçambique, trespassava África e chegava ao Maputo.  

               Entretanto, Carmina Tete reformou-se. Apesar de já não se encontrar na "Rádio Moçambique", continua a residir no Maputo, e nunca perdemos o contacto telefónico uma com a outra.

               Sempre que nos saudamos, continua a haver um raio de luz que, partindo do Maputo, trespassa Moçambique, afagando as cores, os cheiros e os sons da savana moçambicana, transportando-os consigo até Portugal, ao mesmo tempo que um outro raio de luz parte de Portugal, imbuído com todo o meu amor por Moçambique, trespassa África e chega ao Maputo. 

               E quando esses dois raios de luz se fundem, sentamo-nos as duas a conversar num terraço com vista para o Índico. O Índico que é dela, mas que ela autoriza que eu também chame meu, porque sabe que o Índico pertence a quem o traz no coração. E enquanto conversamos e saboreamos suculentas mangas, admiro as acácias rubras e os jacarandás lilases das avenidas do Maputo. E, mais ao longe, vislumbro uma nuvem dourada a pairar sobre Xai-Xai, a cidade-natal de Carmina, e, a uma distância muito maior, ainda consigo avistar uma nuvem cor-de-rosa a flutuar sobre Nampula, a cidade da minha meninice, a minha Nampula. Então,  as duas nuvens correm ao encontro uma da outra e fundem-se num abraço eterno: o abraço de África.

               Um dia, minha Querida Carmina, havemos de nos encontrar no Maputo. E, então, dois raios de luz trespassarão Moçambique do Maputo ao Rovuma, e afagarão à sua passagem, as cores, os cheiros e os sons da savana de Moçambique, após o que regressarão ao Maputo, vindo depositar nas nossas mãos o coração de África, mostrando ao mundo que a verdadeira amizade não conhece cores de pele nem está dividida por continentes. 


                                                                     Texto e Registo Fotográfico da Isabel Maria

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O FEITIÇO DO ÍNDICO



         
              Ao entardecer, nessa hora dos mágicos eventos, Maria Nampula caminhava pela fina areia branca da praia de Fernão Veloso. O seu andar era uma valsa abrilhantada pelo trinar das aves e o rebentar das ondas que estendiam um manto rendilhado a seus pés.
              Mulher alta, com porte de gazela, a sua pele da cor do chocolate  contrastava vivamente com as duas esmeraldas que trazia no olhar.
              Os pés eram finos e compridos, quais pés de Cristo, e marcavam um passo suave mas decidido. Inabalável. Como inabalável se revelara o diagnóstico que, numa tarde fria de Junho, lhe havia sido arremessado: carcinoma ductal invasivo, que requereria uma mastectomia radical modificada e um cortejo de terapias adjuvantes: quimioterapia, radioterapia e hormonoterapia, das quais se mantinha esta última, que consistia na ingestão diária de um comprimido de “Tamoxan" 20.
               Após a ablação do seio esquerdo, continuava linda, com uma elegância que não passava despercebida em parte alguma, e enquanto não era chegada a hora de se submeter a uma mamaplastia, a falta anatómica era sábia e suavemente disfarçada com uma prótese de silicone introduzida na bolsa da copa do soutien, prótese essa cujo peso e volume eram muito próximos dos do seio que Deus lhe tinha permitido conservar.
               Olhou para lá da linha do horizonte. Uma lágrima teimosa soltou-se das esmeraldas que trazia no olhar e deslizou como um fio de prata pelo seu rosto, tornando ainda mais brilhante a expressão do seu olhar.
               Um ano antes, um neurocirurgião paquistanês chegado ao Maputo para coordenar uma série de acções de formação sobre o aneurisma intracraniano, tinha-lhe sido apresentado num cocktail na Ilha de Inhaca e depressa se convertera no seu amigo de eleição e confidente e, depois, no seu noivo e amante. Tinha sido ele quem lhe tinha dado alento nessa fase difícil, fazendo-a emergir dos destroços em que a doença a prostrara.
                Na véspera da festa em que iria pedir a sua mão, sucumbira às mãos de um acidente vascular cerebral.
                Havia dois meses e, desde então, ela vestia a alma de luto, mesmo quando, como naquela tarde, envergava um vestido de cor encarnada, o preferido dele.
               Recordou uma vez mais, e outra, e outra ainda, e mais outra, a pele dele da cor da canela, com cheiro a âmbar, o corpo musculado, as gargalhadas vigorosas que dele se desprendiam, as mãos com que a afagava. Aquele olhar penetrante que colocava o corpo dela ao rubro num frémito de desejo.
                Todos os dias, ao fim da tarde, ela caminhava na fina areia branca da Praia de Fernão Veloso e banhava-se no Índico, pois acreditava que a força viva das águas onde, àquela mesma hora, ele a abraçara e beijara vezes sem conta, haveria de o trazer de volta.
                Naquele final de tarde, avançou mar adentro, atraída por um chamamento divino. Da crista de uma onda emergiu um cavalo alado branco montado por um musculado homem moreno que, com o olhar inundado de embevecimento, avançou na direcção de Maria Nampula, tomou-lhe suavemente a mão e sentou-a no seu colo,  afagando-a e beijando-a sempre. Dela emanava um sorriso de inexcedível felicidade, e, ao som de uma melodia cantada por querubins, o cavalo correu sobre as águas, até que desapareceu para lá da linha do horizonte, deixando atrás de si um raio de luz e uma abóbada de estrelas.
                  No dia seguinte, quando o corpo da mulher deu à praia, “Carapinha Tonta”, o rapazinho com oligofrenia moderada que, em cada final de tarde, se sentava na praia só para ver passar Maria Nampula, contou aos orgãos de polícia criminal e à comunicação social que a mulher tinha corrido mar adentro até desaparecer para todo o sempre no âmago de uma onda mais violenta.
                  Quando lhe perguntaram porque é que não tinha ido buscar socorros na hora, respondeu que não tinha conseguido desviar o olhar de um raio de luz e de uma abóbada de estrelas que se tinham desprendido das águas no momento do desaparecimento dela, e que esse raio de luz, num primeiro momento, o encandeara, para, logo de seguida, o hipnotizar e lhe paralisar as pernas, só tendo voltado a conseguir andar ao acordar, na manhã seguinte, com as ondas a lavarem-lhe os pés e o sorriso dela a quebrar, por alguns instantes, a linha do horizonte.                 
                    É por isso que ainda hoje, ao fim da tarde, na praia de Fernão Veloso, os turistas gostam de se sentar na fina areia branca, com o mar a cantar a seus pés, a apreciar o raio de luz e a catadupa de estrelas que, lá muito ao longe, junto da linha do horizonte, se desprende das águas. É nessa altura que, diz-se, o neurocirurgião paquistanês vem buscar Maria Nampula e ambos se fundem numa só vibração de alma, da qual emergem as estrelas que são um regalo para os turistas. É também nesses finais de tarde que “Carapinha Tonta” recolhe moedas de turistas ávidos de histórias de encantar, em troca do seu depoimento privilegiado de testemunha presencial da última passagem de Maria Nampula na Praia de Fernão Veloso e da sua fusão, num final de tarde, com o neurocirurgião paquistanês que voltou só para a vir buscar. 


                                      Reedição de um texto meu outrora publicado neste blog.
                                             Registo fotográfico de um quadro que é uma aquisição minha e que está assinado por Y. Demi.

domingo, 8 de janeiro de 2012

A CHUVA DANÇOU COM ELA


                   Chovia ferozmente em Nampula, como sempre acontece na estação das chuvas.

                   Chuva que começa por nos afagar de mansinho a face, para, logo de seguida, nos sacudir o espírito e nos lavar a alma, numa inebriante sensação de paz que se desprende da lassidão quente da terra fecundada pela raiva das águas.

                   Inês tinha gravada na memória, a visão da sua pele de chocolate doce, acariciada pela chuva, à qual ela sempre se expunha irresistivelmente, qual rosa de ébano desabrochando às mãos de uma divindade. Quando chovia, até o sangue negro que lhe corria nas veias, clareava, o corpinho de menina tornava-se ainda mais ágil, e do sorriso que sempre lhe era fácil, irradiava agora uma luz tão suavemente intensa, que inundava África inteira de uma paz sem par.

                    Depois de cada dilúvio com que o jardim que a vira nascer era presenteado, Inês corria cheia de vigor, em acção de graças, para debaixo do velho embondeiro, tão imenso como a sombra que dava quando o sol flamejava, e em cujo tronco ancestral, havia um buraco em forma de gruta, onde ela acreditava que vivia um deus negro que a protegia e lhe dava a bênção das chuvas.

                     A menina corria e saltitava impulsionada pelo frenesim da chuva e tudo era festivo na sua vida. Em África a vida é uma festa! Para mais, quando se é criança e o sol celestial nos aquece o espírito e a chuva divina nos dá alento, enquanto nos soltamos em machambas verdes a perder de vista, onde nem o céu é o limite.

                    Mas a festa da vida terminou num dia de chuva em 1973, quando Inês foi obrigada a abandonar a sua terra natal, mercê da guerra colonial que avassalava Moçambique. Nessa manhã cinzenta, Inês foi impiedosamente expulsa da sua África - Mãe, como um feto supliciado, arrancado a esfacelamento das entranhas do ventre materno.

                     Para trás, ficavam os fins-de-semana na praia de Fernão Veloso, os Natais na Ilha de Moçambique, o mês de Janeiro das férias grandes na Ilha de Inhaca, como para trás ficava o voo dos flamingos que, bailando em seu redor, à beira-mar, vinham render-se a seus pés, numa homenagem àquela cujas gargalhadinhas angelicais ainda hoje ecoam naquelas paragens do Índico.

                    Para trás, ficava Lichinga, onde Inês visitava a Avó Paula que sempre lhe contava intermináveis histórias enquanto a abrigava e afagava no seu colo, apaziguando, assim, a dor da menina que nunca conhecera sua mãe, porque esta, para a ver nascer, tivera de partir.

                   Também em Lichinga ficava para sempre o cortejo de mainatos de sua avó, os quais tinham baptizado Inês com o nome de “Princesa do Niassa”.

                   Não mais voltaria a Mocimboa da Praia, onde seu pai gostava de visitar o governador de Nampula no seu retiro de fins-de-semana, e onde os habitantes locais comentavam que Inês era a “menininha” mais bonita do Rovuma ao Maputo.

                   Para trás, ficavam aquelas pérolas cinzentas escuras que, estonteadas, dançavam nos olhos do mainato mais novo de sua casa, de cada vez que olhava para Inês. 

                   No final da vida, Inês sofria desesperadamente a ausência das quedas de água que generosamente ganhavam corpo no jardim da sua infância todas as vezes que chovia.

                   Já na fase terminal do cancro que a condenou, Inês quis voltar ao Olimpo de Nampula, às suas chuvas e ao velho embondeiro, de que se havia despedido trinta anos atrás. Acreditava que o mal que lhe minava o corpo, seria eliminado pela força redentora das chuvas de Nampula que caíam sempre com vigor virginal.       

                    Quando chegou, em plena estação das chuvas, não caía nem uma gota de água. Mesmo assim, não perdeu a esperança - não era aquela a terra das chuvas? - e regressou ao seu embondeiro de sempre, agora em passo suave, porque o seu vigor físico já não conseguia acompanhar o frémito da sua alma.

                    Inês sentou-se debaixo da velha árvore, abraçada pelo deus negro da gruta. De repente, começou a chover ferozmente. Em breve, a chuva deu lugar a uma tempestade tropical. Inês levantou-se e, com uma expressão de enleio supremo, começou a dançar à volta do embondeiro, com os olhos apontados para o céu, para receber directamente na sua face de ébano, a fertilidade da chuva de África. A trovoada emudeceu em homenagem à filha da terra e a chuva fez-se serena só para ela. Numa simbiose perfeita entre a vida humana e a natureza, a chuva entendeu que deveria acompanhar o ritmo de alguém que já só conseguia deslizar. Ternurenta, a chuva dançou com ela tomando-a pela cintura, e acariciou-lhe uma última vez a face de ébano, perfumando-lhe a alma.

                     Terminada a dança, Inês, saciada, foi de novo sentar-se debaixo do embondeiro, onde a esperava o seu deus africano que, beijando-lhe suavemente a testa, lhe ofertou um sorriso sem mácula, do qual se desprendeu um subtil eflúvio de terra purificada. Inês sorriu, e sentada, partiu feliz.

                       Reza a lenda que, de cada vez que chove copiosamente em Nampula, emerge da terra molhada, sob o velho embondeiro, uma gentil figura de senhora que, com o rosto de ébano completamente iluminado, sorri invadida por uma paz que não é deste mundo, e que, de seguida, se levanta e dança com a chuva, amainando-a, até que se senta debaixo da árvore e, sempre sorrindo, regressa à terra molhada de onde desabrochou.

                                                                    Texto e fotografia da Isabel Maria. Republicação do texto com que, em Dezembro de 2010, foi inaugurado este blog.