15 horas do dia 8 de Setembro de 2006. Aeroporto Internacional de Cointrin. No formigueiro de partidas e chegadas, uma mulher de Córdova, elegantemente vestida por Chanel, com a alma de luto, pisa solo da confederação helvética.
Amiga desde sempre do “Musée International de la Croix Rouge et du Croissant Rouge”, sediado em Genève, chega de Madrid, a fim de, no dia seguinte, participar numa conferência internacional no Museu sobre os direitos da mulher.
Desta vez, o desembarque em Genève constitui para si um suplício. A melancolia que, dia após dia, a vem consumindo, esfacela-lhe a alma neste primeiro reencontro com o cantão de Genève desde que o seu universo ruíu há um mês.
Após uma hora de viagem por estrada, chega a Vevey, essa famosa estância de férias da Riviera Suíça, onde Charlie Chaplin passou os últimos 25 anos da sua existência e onde foi sepultado em 1977. Foi aqui que ela, o pai, natural de Zurich, e a mãe, natural de Córdova, passaram muitas férias de verão e de Natal numa mansão adquirida pelo pai, que ela herdou há 5 anos.
Chegada à mansão, a mulher dirige-se ao seu quarto, abre o saco de viagem Luis Vuitton, e dele retira uma boneca de porcelana, também ela elegantemente vestida, que tem junto de si um cartão cor de rosa. As mãos da mulher pegam uma vez mais no cartão, cujas palavras dir-se-iam gastas de tantas vezes terem sido por si avidamente lidas. Deita-se sobre a cama e fixa as labaredas que ganham forma na lareira. Do centro das chamas, desprende-se um suave rosto de homem.
Sete meses atrás, numa conferência internacional sobre as fichas de recenseamento dos prisioneiros de guerra, a decorrer no “Musée International de la Croix Rouge et du Croissant Rouge", a mulher de Córdova conheceu um milanês que tinha sido convidado pela organização para proferir uma palestra sobre o tema.
Ela estava a assistir na primeira fila do auditório e ficou seduzida pela voz escaldante dele, pelo brilhantismo sereno com que dissertava, pela sua elegância sóbria e despretenciosa e pelo modo com que os olhos dele penetravam os dela de cada vez que terminava uma frase. O olhar dele tornara-se, durante toda a sua intervenção, um desconforto muito doce para a mulher de Córdova. Quando a palestra terminou, ela interveio, exaltando desde logo, a forma briosa com que ele abordara o tema que ali congregava todos, e, de seguida, colocou à cognição dele algumas questões, mais para corroborar as ideias que ele tão convincentemente tinha expendido e para garantir que a atenção dele estaria direccionada exclusivamente para o olhar dela durante alguns momentos, do que propriamente para obter, da parte dele, algum esclarecimento. Foi com surpresa que, enquanto dirigia a palavra àquele de Milão, sentiu as faces ruborizarem-se, a frequência cardíaca aumentar e a respiração entrar num ritmo acelerado. No decurso do "Verre de l´Amitié" que, findos os trabalhos, teve lugar no Museu, ele aproximou-se dela, e ela sentiu-se imediatamente acariciada pela ternura daquele olhar. O de Milão disse-lhe que os olhos dela irradiavam mais luz do que uma catadupa de astros, que desde a primeira hora, tinha vislumbrado uma doçura inigualável no seu olhar e que, quando visitasse Espanha, seriam os olhos dela que ele iria procurar em cada espanhola.
Quando na despedida, ele a beijou suavemente em cada face quente, incendiou-a por dentro e por fora, fazendo-a mergulhar num frémito de desejo do corpo dele, e esse incêndio que eclodiu nela, depressa se propagou primeiro ao corpo e depois à alma dele.
De repente, ele ficou paralisado a olhar para ela e, findos alguns instantes, disse-lhe que, afinal, não podia regressar já a Milão, pois tinha uma vontade inabalável de repousar numa varanda com vista para a alma dela.
Juntos abandonaram, então, o Museu e viajaram até Vevey.
Aí, no chão do quarto dela, junto à lareira acesa, sobre um tapete de Arraiolos, e nevando copiosamente lá fora, o vulcão que havia no corpo de cada um deles entrou em erupção, e, depois de fundirem os dois corpos numa só vibração de alma, beberam taças do subtil "Dôle", produzido a partir de uma mistura das castas Gamay e Pinot Noir, que o de Milão sempre considerara o melhor dos vinhos tintos suíços.
Nos meses que se seguiram, tiraram fotografias no Quai Perdonnet, junto à estátua de Charlot, passearam e trocaram confidências ao longo da marginal noroeste do Lago Léman, entre Lausanne e Villeneuve, e muitos foram os beijos que passaram a valer uma eternidade, tendo como fundo o Château de Chillon, este a repousar serenamente num promontório rochoso na margem leste do Lago, e cercado por espessas muralhas e por três torreões semi-circulares.
Em Montreux, essa joia da Riviera suíça, assistiram juntos ao festival de jazz desse ano, em Julho.
Numa manhã do início de Agosto, o de Milão viajou sozinho de carro até Genève, a fim de comprar uma prenda para o aniversário dela, no dia seguinte. No regresso, o veículo automóvel ligeiro de passageiros conduzido pelo milanês, transitava regularmente na estrada que liga Montreux a Vevey, nesse mesmo sentido, dentro da sua mão-de-trânsito. Pela mesma estrada, mas em sentido contrário ao do de Milão, transitava, a uma velocidade de 120 Km/h, um veículo automóvel pesado de mercadorias. Tal velocidade, para além de superior ao limite máximo de velocidade legalmente permitido naquela estrada, para aquela categoria de veículos, era manifestamente inadequada às condições e ao traçado da via no local. Com efeito, a estrada descreve aí uma curva apertadada que se desenha para a direita, tendo em atenção o sentido de marcha que o pesado de mercadorias prosseguia - Vevey-Montreaux, e a estrada estava molhada, mercê da chuva impiedosa que, naquela tarde de Agosto, caía, sendo por isso precárias as condições de aderência do pesado ao asfalto. Mercê do excesso de velocidade com que seguia, o condutor do pesado não conseguiu dominar o veículo quando este descrevia a aludida curva, o que fez com que o mesmo fosse invadir a hemi-faixa de rodagem contrária, por onde transitava regularmente o ligeiro de passageiros conduzido pelo milanês. Por causa desta inusitada e inopinada invasão da sua hemi-faixa de rodagem, o milanês não conseguiu evitar o embate frontal do ligeiro de passageiros por si conduzido, no pesado de mercadorias. Como consequência directa e necessária do embate, resultaram no de Milão as lesões cranio-meningo-torácicas descritas no relatório de autópsia, que foram causa adequada da sua morte.
Quando a de Córdova foi fazer o reconhecimento do cadáver à morgue de Montreux, foi-lhe entregue uma caixa embrulhada em papel de seda florido, com um laço de veludo encarnado, encontrada dentro da viatura conduzida pelo milanês. Dentro da caixa, estava aondicionada uma boneca de porcelana elegantemente vestida, e, junto da boneca, repousava um cartão cor de rosa onde se lia "Para a mulher de Córdova, que é e será sempre o sol dos meus dias."
O crepitar da lareira torna-se agora brutalmente intenso, despertando a mulher do torpor das suas memórias. Lê o cartão uma vez mais, aperta a boneca contra o peito e desaba num pranto. A neurose depressiva que, aos poucos, a vem tragando, está a tomar-lhe a dianteira. Repara que a expressão doce do de Milão já não emerge das labaredas. Agarra na boneca, da qual não mais se tinha conseguido separar, e, levando-a consigo, sai do quarto em passo apressado. Dirige-se à adega da mansão, abre uma garrafa de “Dôle”, bebe 2/3 do seu conteúdo, corre para o volante do seu Mercedes CLK, coloca a boneca no colo e faz-se à estrada, "voando" até Genève, na direcção do "Musée International de la Croix Rouge et du Croissant Rouge".
Aí chegada, imobiliza a viatura e olha uma última vez para o Museu, onde, por detrás de uma janela do auditório iluminado, vislumbra o rosto do de Milão a sorrir-lhe e a acenar-lhe. De seguida, ele abre a janela, pela qual sai voando, e desaparece nos céus de Genève. Ela acelera fundo até junto do Lago Léman. Pára junto ao Horloge Fleurie, à entrada do Jardin Anglais, e sai do carro. Olha uma vez mais, o "Jet d´Eau", a fonte mais potente da Europa, que, de Maio a Setembro, desabrocha todos os dias, disparando um jacto de água a 140 m de altura, com um débito de 500 litrospor segundo, a uma velocidade de 200 km/h. Com passo indolente, sempre com a boneca ao colo, lê uma última vez o cartão cor de rosa: "Para a mulher de Córdova que é e será sempre o sol dos meus dias". Tira os sapatos de salto alto “Christian Dior” e mergulha nas águas frias do Léman, para não mais voltar.
No dia seguinte, quando o corpo da mulher é retirado das águas juntamente com a boneca, o sol brilha por breves instantes, por entre a temperatura negativa do ar e a cor cinzenta do dia que nasce, de uma forma tão suavemente intensa, que afaga a alma de todos quantos, naquele momento, se encontram junto ao lago.
Texto e foto (Lago Léman - Genève) da Isabel Maria