segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

REZA MARIA

Suam no trabalho as curvadas bestas
e não são bestas
são homens, Maria!

Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos
e não são cães
são seres humanos, Maria!

Feras matam velhos, mulheres e crianças
e não são feras, são homens
e os velhos, as mulheres e as crianças
são os nosso pais
nossas irmãs e nossos filhos, Maria!

Crias morrem à mingua de pão
vermes na rua estendem a mão à caridade
e nem crias nem vermes são
mas aleijados meninos sem casa, Maria!

Do ódio e da guerra dos homens
das mães e das filhas violadas
das crianças mortas de anemia
e de todos os que apodrecem nos calabouços
cresce no mundo o girassol da esperança.

Ah! Maria
põe as mãos e reza.
Pelos homens todos
e negros de toda a parte
põe as Mãos
e reza, Maria!


JOSÉ CRAVEIRINHA, publicado in http://chuvadeletras.no.sapo.pt/jose-craveirinha.htm

sábado, 25 de dezembro de 2010

Negra

Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos
quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias...
Teus encantos profundos de Africa.

Mas não puderam.
Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedas-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,
animalidade, magia...
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.

Em seus formais cantos rendilhados
foste tudo, negra...
menos tu.

E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE


Noémia de Sousa, publicado por http://www.astormentas.com/din/poema.asp?key=7688&titulo=Negra.
"À ESPERA"

Aguardo-te
como o barro espera a mão.

Com a mesma saudade
que a semente sente do chão.

O tempo perde a fonte
e a manhã nasce tão exausta
que a luz chega apenas pela noite.

O relógio tomba
e o ponteiro se crava
no centro do meu peito.

Fui morto pelo tempo
no dia em que te esperei.


"À Espera", in "idades cidades divindades" - Editorial Caminho - 2007, p. 109.
"O POETA"

O poeta não gosta de palavras:
escreve para se ver livre delas.

A palavra
torna o poeta
pequeno e sem invenção.

Quando,
sobre o abismo da morte,
o poeta escreve terra,
na palavra ele se apaga
e suja a palavra de areai.

Quando escreve sangue
o poeta sangra
e a única veia que lhe dói
é aquela que ele não sente.

Com raiva,
o poeta inicia a escrita
como um rio desflorando o chão.
cada palavra é um vidro em que se corta.

O poeta não quer escrever.
Apenas ser escrito.

Escrever, talvez,
apenas enquanto dorme.

Mia Couto, "idades cidades divindades" - Editorial Caminho 2007 - ps 117 e 118.
De http://www.ponto.altervista.org/Livros/Doc/craveirinha.hotmail,transcrevo esta delícia -
"Pena"

Zangado
acreditas no insulto
e chamas-me negro.
Mas não me chames negro.
Assim não te odeio.
Porque se me chamas negro
encolho os meus elásticos ombros
e com pena de ti sorrio.

JOSÉ CRAVEIRINHA
Da velhice
sempre invejei
o adormecer
no meio da conversa.

Esse descer de pálpebra
não é nem idade nem cansaço.

Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia.

Mia Couto - "Sono Coloquial", in "idades cidades divindades" - Editorial Caminho - 2007, pag. 14.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Mãe... São três letras apenas
As desse nome bendito:
Também o Céu tem três letras...
E nelas cabe o infinito.
Para louvar nossa mãe,
Todo o bem que se disse
Nunca há de ser tão grande
Como o bem que ela nos quer...
Palavra tão pequenina,
Bem sabem os lábios meus
Que és do tamanho do Céu
E apenas menor que Deus!

(“Mãe” – Mário Quintana.)



"Magoaste-te, meu filho?"

Naquela tarde, estava eu sentada na esplanada da pastelaria, a saborear um duchesse e a deliciar-me com uma chávena de chocolate quente, quando vi passar Francisquinha.
Com o seu passo ligeiro, dirigia-se, como acontecia diariamente, para o estabelecimento prisional da cidade, onde seu filho cumpria pena de prisão por homicídio qualificado na forma tentada da própria mãe.
Era uma mulher marcada a ferro e fogo pela vida madrasta, mas, nem por isso, o sorriso que lhe emoldurava o rosto, se extinguia alguma vez. Tinha um sorriso triste, é certo, mas nunca deixava de sorrir com uma pureza e uma serenidade inigualáveis. Dir-se-ia um sorriso angelical.
Oriunda de uma família de escassos recursos económicos, vira sua mãe, uma bonita alternadeira, já cansada dos maus-tratos físicos e psicológicos que o companheiro e pai de sua filha lhe infligia, abandonar o lar quando ela tinha tão somente dois anos de idade. Francisquinha fôra, então, deixada em casa com o pai, alcoólico inveterado, que passava os dias a deambular pela cidade, sem qualquer modo de vida.
Logo no próprio dia do abandono do lar por parte da mãe de Francisquinha, uma vizinha, alertada pelo choro insistente da criança dentro de casa, solicitou a comparência da Guarda Nacional Republicana que, após proceder ao arrombamento da porta da casa, viria a constatar que Francisquinha ali se encontrava sozinha há bastantes horas, no interior do “parque” para bebés, entregue à sua sorte, enquanto o pai, completamente embriagado, percorria as tascas da cidade. Contactada de imediato a Segurança Social e, através desta, o Tribunal de Família e Menores, Francisquinha foi, ainda nesse dia, provisoriamente institucionalizada.
O pai nunca a visitou, assim como jamais procurou, por qualquer forma, inteirar-se do seu estado.
Do paradeiro da mãe não mais alguém viria a saber.
Em breve, o Tribunal decretaria a inibição do exercício do poder paternal de ambos os progenitores de Francisquinha e a entrega definitiva desta à instituição que a acolhera.
Volvidos uns anos, o pai acabaria por ser morto numa rixa de ciganos, numa casa de alterne da cidade.
Quando atingiu os 18 anos de idade, Francisquinha deixou de estudar e saíu da instituição, para casar com um homem 10 anos mais velho do que ela, que, em breve, deixaria de representar o papel de respeitável cidadão, para passar a andar permanentemente etilizado, acabando por abandonar definitivamente o local de trabalho e começando a infligir, de forma reiterada, maus-tratos físicos e psíquicos a Francisquinha.
Ao fim de dois anos de casamento, ele morreu com uma cirrose hepática, e Francisquinha, com um filho de seis meses nos braços, ficou timoneira única do barco, seriamente empenhada em jamais permitir que este naufragasse.
Funcionária administrativa na secretaria de uma escola secundária, e confeccionando, à noite e nos fins-de-semana, bolos e doces para fora, conseguiu, à custa de muito trabalho e contenção nas despesas, uma vida com as finanças equilibradas.
Quando seu filho tinha 17 anos de idade, Francisquinha começou a aparecer, a toda a hora, com equimoses e hematomas. Toda a cidade comentava que o filho lhe batia ferozmente, tornando a vida dela uma via crucis. Inicialmente, quando alguém a questionava sobre a origem dessas lesões corporais visíveis, Francisquinha respondia, invariavelmente, que tinha caído nas escadas interiores de sua casa e comentava, logo de seguida, que a casa era antiga e tinha uma escadaria com degraus de pedra demasiado altos. Mais tarde, as pessoas já nem lhe perguntavam nada, para não a deixarem constrangida e sufocada pela necessidade de lhes mentir.
Quando o filho perdeu a última réstia de vergonha e, por entre as chamas do inferno dos produtos estupefacientes que consumia, a começou a maltratar física e psiquicamente na via pública, a comunidade teve, finalmente, a certeza de que as lesões corporais que Francisquinha apresentava, não resultavam de qualquer queda nas escadas, sendo antes consequência directa e necessária do peso da cruz que ela carregava.
Aos 18 anos de idade, seu filho foi condenado por assalto à mão-armada a uma agência bancária de uma vila vizinha, na pena de 7 anos de prisão. Todos os dias, à tarde, Francisquinha o visitava no estabelecimento prisional. Por vezes, transportava consigo pequenas doses de heroína para consumo pessoal do filho, que fazia entrar no estabelecimento prisional na copa do soutien ou no interior das cuecas, e que, à socapa, passava ao filho. Fazia-o numa tentativa desesperada de acalmar as fúrias dele que, no auge do síndrome de abstinência da droga, a ameaçava de morte quando saísse da prisão, se ela não lhe levasse o produto estupefaciente. “Deixa-me sair daqui, e hás-de aparecer esventrada que nem uma cadela, numa valeta à beira do cemitério, se amanhã não me trouxeres aquilo que sabes que quero!”, explodia ele.
Para aquisição das doses, Francisquinha infiltrava-se, pela calada da noite, no bairro dos marginais da cidade, onde comprava o produto estupefaciente aos dealers que abasteciam seu filho quando em liberdade.
Quando o filho saíu em liberdade condicional, Francisquinha voltou a aparecer, constantemente, com equimoses e hematomas, o que aconteceu até ao dia em que, depois de o filho lhe ter pedido dinheiro para mais uma dose de heroína e ela lhe ter respondido que não tinha nem mais um centavo, e que já não aguentava passar mais fome para lhe dar dinheiro para a droga, o filho lhe desferiu três violentas facadas no ventre. Sujeito ao 1º interrogatório judicial de arguido detido, veria decretada a sua prisão preventiva. Acusado pelo Ministério Público da prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada de sua própria mãe, viria a ser submetido a julgamento e condenado na pena de 12 anos de prisão. Francisquinha, durante o Julgamento, na qualidade de mãe do arguido, usara da prerrogativa legal de se remeter ao silêncio, “para não prejudicar o meu menino”, como ela se justificaria mais tarde.
Os médicos nunca conseguiram explicar como é que Francisquinha se salvou, pois sempre tinham considerado inevitável a sua morte, devido à região corporal visada e atingida e à natureza, extensão e profundidade das lesões provocadas. Falavam em “milagre” e o pároco da igreja onde Francisquinha ia à missa todos os domingos, asseverava que Deus a tinha salvo por ela só fazer o bem na terra e, como tal, a sua presença aqui ser imprescindível. Na altura, valera a Francisquinha um vizinho que, alertado pelos seus gritos, acorrera a prestar auxílio.
Desde que o filho ingressara de novo na prisão, Francisquinha deixara de apresentar equimoses e hematomas, e continuava, tal como aquando da primeira reclusão dele, a ir visitá-lo todas as tardes.
O que fazia correr Francisquinha? Que estranha força da natureza é essa, que faz com que uma mãe continue a dar a vida pelo filho que tentou tirar-lhe a sua própria vida?
Enquanto olhava para Francisquinha e saboreava o meu duchaisse e o meu chocolate quente, lembrei-me de uma lenda que minha mãe me contara um dia, e que perpetuei na memória: Um filho, para mostrar a sua lealdade a uma seita e aí obter aceitação, matou a própria mãe e arrancou-lhe o coração para o levar ao bando de assassinos, como prova do homicídio vindo de perpetrar. Introduziu, então, o coração numa caixinha, fechou-a, tomou-a nas suas mãos e desatou a correr para chegar depressa junto da associação criminosa e apresentar a almejada prova que o iria consagrar no seu seio. No caminho, porém, tropeçou e caíu aparatosamente. A caixinha desprendeu-se das suas mãos e caíu, também ela, por terra. Foi, então, que do interior da caixinha, soou uma voz miudinha, cheia de ternura: “Magoaste-te, meu filho?”
Esta lenda, que demonstra que o amor de mãe não conhece limites, tem, pela sua riqueza, sido contada de geração em geração, atravessando o pó dos tempos, tendo, assim, chegado aos nossos dias.
Voltei a olhar para Francisquinha e vi-a, com o seu passo ligeiro, a aproximar-se do estabelecimento prisional. De repente, um homem encorpado aproximou-se dela e, com o olhar desvairado, ordenou-lhe que lhe desse dinheiro. Quando ela lhe respondeu que já não tinha mais dinheiro consigo, ele empurrou-a violentamente, o que fez com que ela perdesse o equilíbrio e caísse desamparada no chão. Acto contínuo, o homem, com chispas de ódio a turvar-lhe o olhar, retirou do bolso interior do blusão, uma faca com uma lâmina refulgente e afiada, que espetou violentamente, por três vezes, no abdómen de Francisquinha. Vi-a contorcer-se num esgar de dor dilacerante e ser violentamente sacudida por um sem número de espasmos agónicos, enquanto se afundava numa poça de sangue. O homem encorpado voltou a meter a faca ensanguentada no bolso interior do blusão, e saíu dali a correr. Ao fugir, tropeçou numa pedra e estatelou-se no chão. Foi, então, que ouvi a voz miúdinha e cheia de amor maternal de Francisquinha, perguntar-lhe: “Magoaste-te, meu filho?”
Logo a seguir, Francisquinha ergueu-se e, sempre com o seu passo ágil, transpôs o portão do estabelecimento prisional. O portão fechou-se e Francisquinha desapareceu para lá das grades de ferro forjado do portão.
Voltei a ouvir as palavras de minha mãe, uma senhora vergada pelo peso dos seus 80 anos cheios de cultura e de saber de experiência feito (se soubesses, mamã, como, mesmo velhinha e vergada, te acho a mais linda de todas as mulheres!), que, a propósito da capacidade de sofrimento das mães que são vítimas de maus tratos dos filhos e que continuam a amá-los incondicionalmente, me perguntou um dia: “Já reparaste que os filhos, quando ainda se encontram dentro de nós, já nos dão pontapés? Não obstante, cada vez os amamos mais. Logo nessa altura, aprendemos a suportar com resignação os outros pontapés que eles depois nos hão-de dar pela vida fora, e nunca deixamos de os amar sem limites, porque eles são carne da nossa carne e é o nosso coração que bate no coração deles.“
Constava-se, havia já algum tempo, que Francisquinha tinha um namorado e que este a mimava como nunca ninguém a tinha mimado. Naquele dia, depois da visita ao filho, um senhor esperava-a ao volante de um veículo automóvel ligeiro de passageiros de alta gama, à porta do estabelecimento prisional. Quando o viu, os olhos dela brilharam. Sorriu como sempre sorria, mas, pela primeira vez, o seu sorriso não era triste. O homem apeou-se, veio ao encontro dela, beijou-lhe ambas as faces e abriu-lhe a porta do carro, no qual Francisquinha entrou como uma princesa. Depois, o senhor voltou a fechar a porta da viatura, contornou esta por trás, entrou novamente no carro, sentou-se ao volante e reiniciou a marcha do automóvel.
Senti uma felicidade inaudita tomar conta de mim. Pela primeira vez, a cidade viu um sorriso feliz no rosto de Francisquinha.
O céu estava azul e o sol abençoava a cidade. Junto da esplanada, os pássaros, nas copas frondosas das árvores, entoavam uma chilreada primaveril, um hino à felicidade de Francisquinha.
Isto aconteceu há dez anos. Entretanto, fui viver para New York com toda a minha família, mas, através de uma amiga, continuei a acompanhar os acontecimentos mais marcantes da vida da cidade de Francisquinha. Soube que, depois de ter cumprido pena pelo crime de homicídio na forma tentada de sua mãe, o filho de Francisquinha viria a ser novamente preso, desta feita para cumprimento da pena de sete anos de prisão efectiva pela prática do crime de abuso sexual de criança. Também me foi transmitido que Francisquinha continuava a visitar diariamente o filho na prisão e a dar-lhe todo o seu amor de mãe, mas que, agora, vivia momentos de rara felicidade ao lado do homem que a amava e que a protegia da truculência do filho, e que era precisamente o homem que, havia 10 anos, eu tinha visto ir buscá-la ao estabelecimento profissional.
Este ano, durante as minhas férias de verão, em Santo Domingo, vi Francisquinha de braço dado com esse homem. Passou por mim a sorrir para ele enquanto ele falava para ela e lhe sorria também. Francisquinha tinha engordado uns quilos, estava elegantemente vestida, e resplandecia uma serenidade feliz. Apesar das rugas no rosto, e do cabelo quase todo branco, os olhos e a pele dela tinham um outro brilho. Tive a certeza que Francisquinha era amada, o que me aconchegou a alma.
Lembro-me que me virei para trás, parei no passeio e fiquei, deslumbrada, a seguir o passo, agora já não tão ágil, mas determinado, de Francisquinha, até ela desaparecer por entre a multidão.
Muito obrigada, Meu Deus, por teres permitido que Francisquinha conhecesse o rosto da felicidade!


Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa

sábado, 18 de dezembro de 2010


Solidão

Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso

Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou

Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas", publicado por http://www.citador.pt/poemas.php?op=10&refid=200811100103.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010


Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas", publicado por http://www.citador.pt/poemas.php?op=10&refid=200811100101
Para Ti

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas", publicado por http://www.citador.pt/poemas.php?op=10&refid=200811100102

sábado, 11 de dezembro de 2010

"Pequenos anjos de Txon Bon"

Naquela tarde do pretérito mês de Agosto, a milhares de quilómetros de Portugal, um sol abrasador fustigava a pequena aldeia de Chão Bom, situada no município do Tarrafal, na parte norte da ilha de Santiago do arquipélago de Cabo Verde, quando chegámos ao antigo campo de concentração, que passou à história com a designação de “campo da morte lenta”.
Este espaço com 200 metros de comprimento por 150 metros de largura, situado a 3 Km da vila do Tarrafal, numa planície limitada a poente pelo Oceano Atlântico, e a norte, a sul e a nascente por uma cadeia montanhosa, foi inspirado nos campos de concentração da Alemanha de Hitler, que, depois, alastraram, como campos de extermínio, a todos os territórios ocupados pelo exército nazi.
A colónia penal do Tarrafal, criada pelo Decreto-Lei nº 26.539, de 23/04/1936, destinava-se, de harmonia com o disposto no seu artigo 2º, corpo e parágrafos 1º e 2º, a presos por crimes políticos que devessem cumprir pena de desterro, ou que, tendo estado internados noutro estabelecimento prisional, se tivessem mostrado refractários à disciplina desse estabelecimento, ou se tivessem revelado elementos perniciosos para os outros reclusos, podendo igualmente ser internados nesta colónia penal, em secção separada, os condenados em penas maiores por crimes praticados com fins políticos, crimes estes sujeitos por lei ao regime prisional comum, e ainda, em caso de necessidade, os presos preventivos por crimes políticos e que o Governo decidisse que deveriam aguardar o julgamento, ou mesmo ser submetidos a julgamento, fora da metrópole.
Antes de eu, o meu marido e os nossos filhos nos apearmos, o taxista que nos transportara desde a Cidade da Praia, e que servia de guia - o Guilherme, um crioulo finalista do curso de Ciências Sociais na Universidade de Cabo Verde, observou peremptório:
- O verdadeiro escopo da “Colónia Penal do Tarrafal”, inaugurada em 29/10/1936, era a eliminação física dos prisioneiros. Prova disso é o facto de o seu primeiro director – Capitão Manuel Martins dos Reis, ter feito questão de anunciar aos prisioneiros que “Quem vem para o Tarrafal, vem para morrer!”. E também esta tese é fortemente alicerçada pelo facto de o primeiro médico do campo de concentração - Esmeraldo Pais de Prata, aqui chegado em Fevereiro de 1937, ter advertido os presos que não estava aqui para curar doentes, mas para “passar certidões de óbito.” (Sic.)
Assim que nos apeámos, pequenos anjos com a pele da cor do chocolate e com a alma branca, rodearam-nos com as mãozitas estendidas, pedindo moedas. Quando as receberam, o brilho que irradiou dos seus olhos, ofuscou os pássaros e flores de Cabo-Verde que, gravados nas moedas, refulgiam sob o sol escaldante daquela tarde.
Preparámo-nos, então, para, na companhia de Guilherme, darmos início à visita do que restava da antiga “Colónia Penal do Tarrafal”, situada num lugar outrora pantanoso e tão isolado quanto inóspito e insalubre, com clima adverso aos europeus.
Guilherme prosseguiu:
- Nos primeiros tempos do funcionamento do campo, quando os presos dormiam em tendas de lona, os mosquitos anófeles, quais verdugos com pés de lã, dançavam a valsa da morte nos pântanos e na água contaminada que abastecia o campo, e que provinha do Poço do Chambão, situado a 700 metros. Esta água continha excrementos de cabras e de burros lazarentos que junto dela paravam para matar a sede. Também as enxurradas que, na estação das monções, provocavam o desabamento das encostas das montanhas, arrastavam consigo burros, cães e aves mortas. Tudo isto a inquinar totalmente a água que os presos consumiam. A piorar o cenário, a infiltração das águas do Atlântico, a 200 metros do campo, nos terrenos por onde corria a água do poço, tornava esta salobra. Inicialmente, não era permitido ferver a água e não havia mosquiteiros, o que escancarava as portas, sobretudo na estação das chuvas, à malária ou paludismo, doença para a qual não havia aqui assistência médica ou medicamentosa eficaz.
Guilherme falava paulatinamente, talvez para nos dar tempo para digerirmos a crueldade da realidade que ele nos estava a transmitir. Após uma breve pausa, continuou:
- Havia ainda os espancamentos, os trabalhos forçados, como, por exemplo, cavar pedra de sol a sol e carregá-la aos ombros, a falta de água, a má qualidade da alimentação e a tristemente célebre “frigideira”, em cujo interior a temperatura chegava a ultrapassar os 50ºC, e onde muitos prisioneiros passavam semanas. No Tarrafal de hoje, não há vestígios da “frigideira”, existindo, tão somente, antes de entrarmos no campo propriamente dito, neste pavilhão situado do nosso lado esquerdo, uma maquete do mencionado “instrumento de tortura”, com um texto alusivo ao mesmo.
Entrámos nesse pavilhão e verifiquei que a “frigideira” consistia numa construção em forma de paralelipípedo, com paredes, tecto e chão em cimento, completamente fechada, com cinco a seis metros de comprimento e três metros de largura. No interior, este bloco de cimento estava dividido ao meio por uma parede, que separava duas celas. Cada uma destas celas, com cerca de 2,5 metros de altura, tinha uma porta de ferro com seis orifícios, cujo diâmetro era inferior a um centímetro, e através dos quais se fazia uma simulação de oxigenação. Por cima das portas, junto ao tecto, havia uma pequena fresta gradeada. O arejamento de cada cela só se fazia quando a porta da mesma se abria durante um curtíssimo espaço de tempo, o que acontecia apenas uma vez de manhã e outra à tarde, no momento da entrega da refeição, composta por pão seco e água ou por pão seco e um caldo com alguns bagos de arroz. Esta caixa de cimento estava, durante todo o dia, sob a acção do sol tropical, já que havia sido propositadamente construída num local do campo sem qualquer possibilidade de sombra.
Guilherme complementou a informação que tínhamos acabado de colher no texto:
- Em cada cela da “frigideira” chegavam a estar doze homens, quando a mesma só tinha capacidade para um, o que agravava a sensação de semi-asfixia dos prisioneiros, sendo a negritude deste quadro adensada pelos ácidos pútridos do latão dos dejectos humanos de que todos se serviam durante semanas.
- Meu Deus, Guilherme! - suspirei eu com o coração esmagado, enquanto abandonávamos o pavilhão. - Como é possível ter existido a “frigideira”?...
- Eu sei que até parece mentira, mas, infelizmente, foi pura realidade.
Quando entrámos no antigo campo de concentração, Guilherme convocou a nossa atenção para o fosso com 4 metros de largura e 3 metros de profundidade a toda a volta do campo, encimado por um talude com guaritas instaladas nos quatro cantos e com 2 filas de arame farpado.
- Mercê da existência deste fosso - prosseguiu ele -, dos carcereiros, das sentinelas com armas de fogo que vigiavam o campo, e do Oceano Atlântico aqui tão perto, estava garantida a impossibilidade de fuga de todo e qualquer prisioneiro.
Percorremos o que hoje resta do Tarrafal e que é monumento nacional cabo-verdiano – as celas, a zona das latrinas, a lavandaria, a cozinha, o posto de socorro e a casa mortuária, cujas estruturas se mantêm de pé, em avançado estado de degradação.
Saí vergada pelo peso da memória agónica deste campo, sentindo que todo o horror que tinha sido uma realidade viva no Tarrafal, se estava a abater sobre mim, minando-me a alma. Lendo o meu coração, o meu marido colocou a mão sobre o meu ombro e disse-me:
- Por vezes, a herança histórica dos povos contem factos tão negros, que as gerações vindouras têm dificuldade em carregar nos ombros o peso dessa herança, mas é bom que se conheça a realidade profunda do Tarrafal, para que nunca mais exista um lugar assim.
À saída, todos os pequenos anjos de Chão Bom (Txon Bon em crioulo cabo-verdiano), estavam ali a pedir-nos moedas, porque, certamente, já tinha corrido a notícia de que tinham chegado uns brancos ao campo do Tarrafal.
Distribuímos as moedas que nos restavam.
Recordo-me, com particular angústia, de uma mãe que me pediu dinheiro para o seu bebé de 3 meses que trazia ao colo. Já não tínhamos connosco escudos cabo-verdianos, mas dei-lhe a única nota que trazia comigo: € 25,00. Volvidos alguns instantes, uma outra mãe surgiu ao pé de mim, com um menino pequenino pela mão e suplicou, com a pureza espelhada no olhar: “Dá também p´ró meu bebé…” Já não tinha mais dinheiro comigo e o meu marido já só tinha com ele o dinheiro necessário para pagar o táxi. Comuniquei, então, àquela mãe, que não tinha mais dinheiro, mas dizer-lhe isso, dilacerou a minha alma de mãe.
Logo de seguida, os pequenos anjos com a pele da cor do chocolate e com a alma branca, continuaram a pedir-nos moedas e eu tive de dizer a verdade: Não tínhamos mais nenhuma moeda. E a minha dor dilacerante a aumentar. Os pequenos anjos acompanharam-nos até ao carro, mas não nos voltaram a pedir moedas. Quais lordes ingleses, com a sua infinita doçura e do alto da resignação com que enfrentam as adversidades e as agruras da vida, abriram a porta traseira direita do táxi para eu e os meus filhos entrarmos para o banco de trás, e, depois de termos entrado, fecharam suavemente a porta. Quando Guilherme, com o meu marido ao lado, iniciou a marcha da viatura, fiquei a olhar para os pequenos anjos através do vidro, e a ser engolida pela angústia de já não ter moedas para lhes dar. E a resignação deles a apunhalar-me no peito, a doçura deles a fazer-se ferida em carne viva na minha alma.
Um pedaço do meu coração ficou ali, em Txon Bon, com aquela mãe para cujo pequeno anjo não dei dinheiro, e outro pedaço ficou com todos aqueles anjos pequeninos a quem não dei mais uma moeda.
Brevemente, quero regressar a Txon Bon para dar uma nota àquela mãe que me pediu dinheiro para o seu pequeno anjo, e para abrir uma porta a cada um daqueles pequenos anjos que vieram acompanhar-nos ao carro e, tão gentilmente, nos abriram a porta.
Senhor, abençoai sempre todos aqueles pequenos anjos, porque deles é o reino dos céus. Permiti que as mães deles jamais deixem de lutar pelo bem-estar dos filhos. Fazei com que nunca mais uma mente humana volte a projectar um lugar como o campo de concentração do Tarrafal. E perdoai-me, Senhor, por, naquela tarde, em Txon Bon, não ter mais dinheiro comigo.
“Quando uma porta de felicidade se fecha, uma outra abre-se; mas muitas vezes, olhamos tão demoradamente para a porta fechada, que não podemos ver aquela que se abriu diante de nós.” – Helen Keller.


"Quando uma porta se abre"

Naquele final de tarde, com a angústia a dilacerar-lhe o coração, encontrava-se em frente do antigo “Liceu Salazar”, hoje “Escola Josina Machel”, no Maputo, estabelecimento de ensino que frequentara anos antes, quando a cidade ainda era conhecida pela designação de Lourenço Marques.
A sua cabeça recuou no tempo. O toque de entrada soava agora por entre a algazarra dos alunos que, às 07h 30m, enchiam o pátio, indiferentes ao calor abrasador que, àquela hora, já se fazia sentir. Aí vinha ela a correr, com procedência da paragem de autocarro. E lá estava ele, impávido e sereno, junto ao portão, alheio ao toque da campainha, à espera dela, só com olhos para a sua menina. Quando ela chegava, o sol brilhava com maior intensidade e as suas almas entrelaçavam-se num abraço eterno.
Tinham-se perdido loucamente de amores um pelo outro, mas esta paixão jamais viria a ser aceite, quer pela família dela, quer pela família dele, pela simples razão de que a pele dele da cor da canela contrastava vivamente com a pele branca dela.
A guerra de libertação e a luta de guerrilha contra o Exército Português – a designada “Luta Armada de Libertação Nacional”, terminou com os Acordos de Lusaka, assinados em 7 de Setembro de 1974, entre o Governo Português e a FRELIMO, na sequência da “Revolução dos Cravos”, e em 25 de Junho de 1975, Moçambique tornou-se uma república independente.
Tinham eles, então, 16 anos de idade e estavam no último ano do Liceu. Ela, filha de um oficial da Força Aérea Portuguesa, em comissão de serviço em Lourenço Marques, deixou Moçambique para regressar a Lisboa com os pais. Ele, pelo contrário, permaneceu na capital moçambicana com os pais - um casal de advogados especializados no ramo do Direito Administrativo.
A separação dos dois jovens foi um suplício sem direito a despedida no aeroporto, porque a sua relação tinha de sofrer o oceano de horrores das relações clandestinas.
Despediram-se um dia, ao entardecer, num vale de lágrimas, com juras de amor eterno e a promessa de que, assim que um deles tivesse a sua independência económica, viajaria ao encontro do outro para, finalmente, casarem, certos de que o fariam contra tudo e contra todos.
Passaram a corresponder-se por carta, dizendo ela a seus pais que as cartas que recebia e que, no remetente, tinham escrito o nome de Catarina Andrade, eram de uma antiga colega e amiga do Liceu, que tinha ficado no Maputo, e transmitindo ele a seus pais que as cartas que recebia e que, no remetente, tinham aposto o nome de João Lemos, eram provenientes de um antigo colega e amigo do Liceu, que regressara a Portugal.
Os anos foram fluindo. Ela estava agora no último ano de Direito em Lisboa e ele cursava Medicina em Joanesburgo. A “Associação de Finalistas” da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa programou a viagem de finalistas desse ano, ao Maputo. Apesar de ainda não ter a sua independência económica, ela podia agora ir ao encontro dele, pois os pais dela custeavam a viagem. Sabiam que ela tinha deixado amigos na capital moçambicana e estavam convencidos que a paixão da filha por aquele rapaz tinha sido um desvario de outros tempos e que ela, felizmente, tinha ganho juízo e deixado, há muito, de pensar nele.
Ela sentia-se feliz, porque tinha, agora, finalmente, oportunidade de viajar ao encontro do seu amor antigo.
Assim, naquelas férias de Páscoa, ela chegou com um grupo de colegas finalistas, ao Maputo, a cidade onde ele, segundo lhe contara por carta, iria estar durante as férias.
Sobre a sua viagem de finalistas, ela nunca lhe tinha contado nada para a surpresa ser total.
Quando chegou ao Maputo, tinha no aeroporto, a esperá-la, uma velha amiga, a quem, na véspera, e no maior sigilo, anunciara a sua chegada, mas a quem jamais tinha contado que o seu relacionamento com o jovem negro prosseguia.
Assim que se abraçaram, ela confidenciou à amiga que ia fazer uma surpresa à sua paixão de sempre. A amiga, com a tristeza a tomar-lhe conta do olhar, disse-lhe que ela tinha de ser forte, porque o que tinha para lhe contar, iria magoá-la profundamente. Ele estava de casamento marcado com uma sul-africana, colega da Universidade de Joanesburgo, que esperava um bebé dele e, após o casamento, ambos partiriam em lua-de-mel para Casablanca, prosseguindo depois, os seus estudos em Joanesburgo.
O mundo dela ruíu. Sentiu-se traída, ultrajada, vilipendiada. Incrédula, balbuciou que ainda na semana passada, recebera dele uma carta com juras de amor eterno. Decidiu que só acreditaria nessa afronta se fosse ele próprio a contar-lhe. Por isso, telefonou-lhe e perguntou-lhe se era verdade. O silêncio sepulcral que se seguiu à pergunta dela, foi uma resposta mais do que elucidativa. Como pudera ser tão ingénua, achando que, durante todos estes anos, ele tinha estado à espera dela?
Quisera fazer uma grande surpresa ao seu amor de sempre e, afinal, a grande surpreendida fôra ela…
- Olá, Princesa!
Sentiu o coração saltar dentro de si. Aquela voz trazia-lhe tantas recordações… Seria possível? A sua memória recuava agora até ao rapaz mais bonito do “Liceu Salazar”, com olhos cor de avelã, sempre impecavelmente vestido e perfumado, com uma educação esmerada, um sentido de humor como não há outro igual, uma voz extraordinariamente meiga e bem colocada, e por quem ela tinha tido um fraquinho bem forte, antes de se apaixonar por aquele que agora a ferira de morte. Só que, na altura, este galã andava perdido de amores pela “Miss Liceu” desse ano, que, por sinal, nem lhe ligava nenhuma.
Naquele momento, a frase “Olá, Princesa!” teve o efeito de um tónico para a sua alma. Seria mesmo ele?
Virou-se e foi-lhe dado observar um veículo automóvel ligeiro de passageiros preto de alta cilindrada, cujo condutor, por detrás de uns óculos de sol “Ray-Ban” que lhe ficavam a matar, lhe sorria com aquele sorriso lindo, de que ela tão bem se lembrava, e que, em seu dia, a seduzira profundamente. Era um anjo caído do céu para lhe dar alento nesta hora difícil.
Foi, então, que ele, rindo, prosseguiu com o seu galanteio:
-Bom final de tarde, Princesa! Imersa em antigas recordações?
Acto contínuo, saltou do volante, veio ao encontro dela e deu-lhe um abraço do tamanho do mundo, que depositou nela toda a força de que ela precisava naquele momento. Continuava irrepreensivelmente charmoso, como nos tempos do “Liceu Salazar”. Até mais belo, porque mais maduro.
Ele contou-lhe que vivia agora no Porto, era engenheiro civil numa multinacional alemã e tinha vindo passar uns dias ao Maputo para celebrar um contrato de empreitada com uma sociedade comercial moçambicana, regressando a Portugal na manhã seguinte.
Nessa noite, jantaram juntos no restaurante do “Hotel Polana”, onde ele se encontrava hospedado.
Passados 12 dias, assim que ela regressou a Portugal, ele viajou até Lisboa para a visitar.
Foi o primeiro de incontáveis encontros de ambos na capital portuguesa e também na cidade do Porto.
Hoje, comemoram 24 felizes anos de casados, têm cinco filhos e três netos e riem-se sempre que recordam que, naquele final de tarde, no Maputo, ela estava mergulhada numa enorme desilusão de amor. Riem-se porque foi essa desilusão que lhes abriu as portas para a inexcedível felicidade que, desde então, lhes tem sido dada a viver.
Na vida, quando se fecha uma janela que deixava entrar a luz, abre-se uma porta que dá para o caminho que nos conduz ao sol.
“And when it's time for leaving Mozambique,
To say goodbye to sand and sea,
You turn around to take a final peek
And you see why it's so unique to be
Among the lovely people living free
Upon the beach of sunny Mozambique.”

Mozambique, by Bob Dylan and Jacques Levy


"Viagem a um tempo de sonho"

Prometera a Mia Couto que não haveria de morrer sem voltar a Moçambique. Fizera-o em Janeiro de 2001, numa tarde em que os rigores invernais da Beira Alta se tinham deixado suavizar por um eflúvio de subtil tropicalidade, mercê da presença do escritor em Viseu, para apresentação do livro "Mar me quer".
Catarina fizera questão de estar presente na conferência do escritor, cuja obra desde sempre admirara.
Ao olhar através dos olhos mensageiros de Mia, vislumbrou o mar de Moçambique, que abraça a fina areia branca das praias a perder de vista, e sorveu o bálsamo que exala da luxuriante vegetação verde saudada pelo sol em cada aurora. O mesmo sol que enche de luz e cor a vida das paragens longínquas e exóticas que, 27 anos antes, tinham visto Catarina crescer durante 9 meses, quando, no ano de 1974, estivera com os pais e a irmã em Nampula, por ocasião da mobilização do pai como major miliciano médico estomatologista ao serviço do Exército Português.
Ao beber as palavras do escritor em Viseu, sentiu ainda mais vivo o desejo de voltar àquele país.
Regressar a Moçambique tornou-se a sua neurose obsessiva de estimação, mas temia que, ao chegar a Nampula e ao acorrer à antiga Messe de Oficiais do Exército Português que, durante meses, a hospedara, a menina de 13 anos passasse por si, no seu passo apressado a caminho do Liceu Almirante Gago Coutinho, a olhasse de relance, e, sem a reconhecer, prosseguisse indiferente o seu trajecto.
Pior do que isso, sabia que seus pais já lá não se encontravam com o seu jeito ágil, com a pele lisa e com total ausência de calvície e de cabelos brancos e que, quando regressasse ao velho continente, a avó Joana já não se encontraria à sua espera, para, numa madrugada fria de Setembro, se fundirem ambas num caloroso abraço. Também tinha a certeza de que a avó não mais lhe enviaria aerogramas para Nampula, com "Um abraço cheio de saudade da avó que te adora.” É que, do alto dos céus, a avó zelava, agora, dia e noite, pela existência da neta, mas nunca ousaria desafiar o poder dos deuses enviando notícias.
Ainda assim, voltar ao passado em Nampula, para viver serenamente o presente e melhor traçar o futuro, tornou-se um imperativo categórico, não só de vontade, como também de consciência.
Saudades de um tempo passado? Não. Como Mia Couto disse um dia, não temos saudades de um tempo passado, temos saudades daquilo que não vivemos. Deixassem-na sentir, agora, em Moçambique, as emoções que, na altura, não tinham morado na menina de 13 anos: Penetrar no mar milenar e milionário de Moçambique e branquear a alma na espuma das águas! Sorver o perfume da terra fértil quando as chuvas de África a fecundam! Beber o pôr-do-sol em África - uma miragem dos deuses, que nos afaga o corpo e nos embriaga a alma! Pedir a um cometa que nos traga África na sua cauda, para que a possamos guardar para todo o sempre dentro de uma medalha e pendurá-la num fio junto ao peito! Sermos "África da cabeça aos pés", aproximando-nos, assim, de Noémia de Sousa e das outras divindades da terra! Entrarmos numa outra galáxia, lá, onde tudo é perfeito e o tempo é beijado por uma inextinguível luz divina! Porque África é luz!
Vários meses tinham voado desde aquele encontro com o escritor, quando um dia, ao entardecer, o universo se tornou subitamente pequeno para abrigar a emoção de Catarina espalhada ao vento. Ia empreender o tão sonhado regresso a Moçambique. As asas de um Boeing 767-400ER iam finalmente transportá-la ao velho porto de abrigo: Nampula.
Perseguia-a a ideia de roubar aos deuses a relíquia africana: a sensação única de que o tempo nunca acaba e a paz de espírito jamais escasseia.
Quando o avião aterrou em Nampula, Catarina chorou um Índico de alegria.
Reparou que a vegetação luxuriante que bordeja a estrada que liga o aeroporto à cidade, a recebeu com o mesmo brilho de outrora e que o sol de há 27 anos se fez menos escaldante só para ela. Um pássaro de fogo rasgou os céus, abrindo alas que anteciparam o cortejo principesco de Catarina, porque verdadeiramente princesa é a mulher que acredita que vai concretizar o seu sonho.
Ao chegar junto do imponente edifício branco da antiga Messe de Oficiais do Exército Português, Catarina viu seu pai, com o porte distinto de Tyron Power, e envergando a farda de oficial do Exército Português, sair da Messe, de braço dado com sua mãe, que levava sua irmã de 6 anos pela mão. Catarina vinha ao lado do pai e envergava uma saia amarela cheia de bolinhas encarnadas e uma blusa branca de malha de algodão sem mangas, e calçava socquettes brancas e sapatilhas encarnadas com bolinhas brancas. Era alta e delgada. Tão longe dos 83 Kg que pesava actualmente! Ria e saltitava. Entrementes, passou para o lado da irmã e segredou-lhe algo, após o que ambas desataram a "rir a bandeiras despregadas".
Sempre a saltitar, Catarina voltou para o lado do pai que lhe ensinava, enquanto ela repetia: "Alferes, Tenente, Capitão, Major, Tenente-Coronel, Coronel, Brigadeiro e General!"
Passou por eles o Dr. Bizarro, um tenente miliciano médico cardiologista, que, olhando para o pai de Catarina, lhe perguntou a rir: "Oh, Alcides! Queres casar a princesa com algum oficial do Exército?..." Catarina corou - ainda estava em idade de corar com estas brincadeiras -, e sorriu timidamente.
Um alferes e dois capitães, devidamente uniformizados, passaram e fizeram continência ao pai de Catarina.
Em frente, permanecia o altaneiro edifício do Quartel-General, do qual saiu um "Volvo" S80 TDI preto, conduzido por um soldado do Exército Português, transportando ao seu lado um cabo, e atrás, um brigadeiro. Junto da Messe, o cabo apeou-se, abriu a porta traseira da viatura, pela qual o brigadeiro saíu apressadamente, voltou a fechar a porta, seguiu o brigadeiro e, estugando o passo, alcançou a porta da Messe, que abriu, dando reverencialmente passagem ao brigadeiro, após o que também ele entrou.
Tudo estava igual. As acácias rubras e os jacarandás lilases irradiavam a luminosidade de outrora, continuando a inundar de cor a vida da primeira cidade militar de Moçambique, e as palmeiras ancestrais não tinham desistido de desafiar os céus.
Também os mainatos continuavam atarefados nas suas lides domésticas e de jardinagem.
Um deles – o Joaquim, que Catarina sempre guardara na lembrança como o melhor cozinheiro da região militar do norte de Moçambique, aproximou-se dela, ofertou-lhe um sorriso sem mácula e um ramo de rosas encarnadas sem espinhos, com o perfume inebriante de África. Na outra mão, trazia um livro que estendeu igualmente a Catarina e que esta aceitou.
Estavam ali todos. E Catarina estava no meio deles. Com tamanha bênção, Cristo tinha, também Ele, de estar ali.
O mainato sorria para Catarina com infinita doçura. Catarina tinha sido contemplada com o singular privilégio de conhecer o sorriso de Cristo: um sorriso imortal só para ela, no rosto mortal do mainato. Sentiu-se, toda ela, acariciada pela paz. O céu era ali! Leu o título do livro que lhe tinha sido ofertado pelo mainato: "Viagem a um Tempo de Sonho”. Teve vontade de lhe perguntar se esse tempo era ali. Mas, com o seu eterno sorriso celestial, o mainato desviara o olhar para a menina de treze anos que, nessa altura, caminhava de mão dada com o pai. Logo de seguida, os olhos do mainato, quais pérolas negras que bailavam entre duas peças do mesmo puzzle, valsearam desde a menina até Catarina e desta até à menina. Dos lábios do mainato desprendeu-se uma melodia celestial. Catarina olhou para a menina e ansiou que ela largasse a mão do pai e corresse na sua direcção. Queria afagá-la, asseverar-lhe que tudo iria correr bem, pedir-lhe que roubasse aos deuses as rédeas do tempo e crescesse depressa, porque iria ser imensamente feliz. Mas, ao mesmo tempo, não lhe podia fazer esse pedido, porque sabia que, quando ela crescesse, veria partir a avó Joana para não mais voltar.
Subitamente, o tempo alterou-se, dando lugar a uma violenta chuva seguida de tempestade tropical. A terra abriu-se, cavando um gigantesco fosso entre Catarina e a menina de treze anos, que foi imediatamente inundado pelo Índico. A menina esfumou-se na bruma do tempo, arrastando consigo os pais e a irmã. O livro "Viagem a um Tempo de Sonho”, que Catarina apertava contra o peito, desprendeu-se suavemente das suas mãos e, ondulando no ar, transformou-se num pequeno coração encarnado que mergulhou nas águas cálidas de Moçambique, onde permaneceria para todo o sempre.
O marido de Catarina chegou a casa com as filhas do casal. Catarina acordou com a alma aconchegada pelo perfume divino de África. O velho disco de vinil de Gilbert Bécaud continuava a tocar. Tinha passado uma hora desde que se reclinara na cadeira de baloiço do terraço da casa da praia, a ler "Mar me quer". Uma hora desde que as suas pálpebras tinham cedido ao cansaço e a sua alma mergulhara numa outra dimensão.
Em Nampula deixara para sempre o seu coração. Em troca, trouxera consigo a imagem viva de paragens que pertencem ao Olimpo. Sempre tinha conseguido roubar aos deuses o maior tesouro, porque o único de que não mais alguém a poderia desapossar: a sensação irrepetível de que o tempo é beijado por uma inextinguível luz divina que nos invade de paz.
Voara nas asas de um sonho e chegara a porto seguro, do qual voltara milionária de felicidade.
Prometera a Mia Couto que não haveria de morrer sem voltar a Moçambique, e voltou.
Hoje, a menina de treze anos feita mulher, tem uma certeza que lhe dá alento: Moçambique será imortalizado pelo Escritor que, no seu jeito de magia intemporal, brotará a cada instante da terra incandescente e emergirá do "mar me quer" do seu “inteiro país", envolto numa aura de estórias "abensonhadas."
"A chuva dançou com ela"

Chovia ferozmente em Nampula, como sempre acontece na estação das chuvas.
Chuva que começa por nos afagar de mansinho a face, para, logo de seguida, nos sacudir o espírito e nos lavar a alma, numa inebriante sensação de paz que se desprende da lassidão quente da terra fecundada pela raiva das águas.
Inês tinha gravada na memória, a visão da sua pele de chocolate doce, acariciada pela chuva, à qual ela sempre se expunha irresistivelmente, qual rosa de ébano desabrochando às mãos de uma divindade. Quando chovia, até o sangue negro que lhe corria nas veias, clareava, o corpinho de menina tornava-se ainda mais ágil, e do sorriso que sempre lhe era fácil, irradiava agora uma luz tão suavemente intensa, que inundava África inteira de uma paz sem par.
Depois de cada dilúvio com que o jardim que a vira nascer era presenteado, Inês corria cheia de vigor, em acção de graças, para debaixo do velho embondeiro, tão imenso quanto a sombra que dava quando o sol flamejava, e em cujo tronco ancestral, havia um buraco em forma de gruta, onde ela acreditava que vivia um deus negro que a protegia e lhe dava a bênção das chuvas.
A menina corria e saltitava impulsionada pelo frenesim da chuva e tudo era festivo na sua vida. Em África a vida é uma festa! Para mais, quando se é criança e o sol celestial nos aquece o espírito e a chuva divina nos dá alento, enquanto nos soltamos em machambas verdes a perder de vista, onde nem o céu é o limite.
Mas a festa da vida terminou num dia de chuva em 1973, quando Inês foi obrigada a abandonar a sua terra natal, mercê da guerra colonial que avassalava Moçambique. Nessa manhã cinzenta, Inês foi impiedosamente expulsa da sua África - Mãe, como um feto supliciado, arrancado a esfacelamento das entranhas do ventre materno.
Para trás, ficavam os fins-de-semana na praia de Fernão Veloso, os Natais na Ilha de Moçambique, o mês de Janeiro das férias grandes na Ilha de Inhaca, como para trás ficava o voo dos flamingos que, bailando em seu redor, à beira-mar, vinham render-se a seus pés, numa homenagem àquela cujas gargalhadinhas angelicais ainda hoje ecoam naquelas paragens do Índico.
Para trás, ficava Lichinga, onde Inês visitava a Avó Paula que sempre lhe contava intermináveis histórias enquanto a abrigava e afagava no seu colo, apaziguando, assim, a dor da menina que nunca conhecera sua mãe, porque esta, para a ver nascer, tivera de partir.
Também em Lichinga ficava para sempre o cortejo de mainatos de sua avó, os quais, desde o nascimento, tinham baptizado Inês de “Princesa do Niassa”.
Não mais voltaria a Mocimboa da Praia, onde seu pai gostava de visitar o governador de Nampula no seu retiro de fins-de-semana, e onde os habitantes locais comentavam que Inês era a “menininha” mais bonita de Cabo Delgado ao Maputo.
Para trás, ficavam aquelas pérolas cinzentas escuras que, estonteadas, dançavam nos olhos do mainato mais novo de sua casa, de cada vez que olhava para Inês.
No final da vida, Inês sofria desesperadamente a ausência das quedas de água que generosamente ganhavam corpo no jardim da sua infância todas as vezes que chovia.
Já na fase terminal do cancro que a condenou, Inês quis voltar ao Olimpo de Nampula, às suas chuvas e ao velho embondeiro, de que se havia despedido trinta anos atrás. Acreditava que o mal que lhe minava o corpo, seria eliminado pela força redentora das chuvas de Nampula que caíam sempre com vigor virginal. Quando chegou, em plena estação das chuvas, não caía nem uma gota de água. Mesmo assim, não perdeu a esperança - não era aquela a terra das chuvas? - e regressou ao seu embondeiro de sempre, agora em passo suave, porque o seu vigor físico já não conseguia acompanhar o frémito da sua alma.
Inês sentou-se debaixo da velha árvore, abraçada pelo deus negro da gruta. De repente, começou a chover ferozmente. Em breve, a chuva deu lugar a uma tempestade tropical. Inês levantou-se e, com uma expressão de enleio supremo, começou a dançar à volta do embondeiro, com os olhos apontados para o céu, para receber directamente na sua face de ébano, a fertilidade da chuva de África. A trovoada emudeceu em homenagem à filha da terra e a chuva fez-se serena só para ela, porque numa simbiose perfeita entre a vida humana e a natureza, a chuva entendeu que deveria acompanhar o ritmo de alguém que já não conseguia saltar, mas apenas deslizar. Ternurenta, a chuva dançou com ela tomando-a pela cintura, e acariciou-lhe uma última vez a face de ébano, perfumando-lhe a alma.
Terminada a dança, Inês, saciada, foi de novo sentar-se debaixo do embondeiro, onde a esperava o seu deus africano que, beijando-lhe suavemente a testa, lhe ofertou um sorriso sem mácula, do qual se desprendeu um subtil eflúvio de terra purificada. Inês sorriu, e sentada, partiu feliz.
Reza a lenda que, de cada vez que chove copiosamente em Nampula, emerge da terra molhada, sob o velho embondeiro, uma gentil figura de senhora que, com o rosto de ébano completamente iluminado, sorri invadida por uma paz que não é deste mundo, e que, de seguida, se levanta e dança com a chuva, amainando-a de mansinho, até que se senta debaixo da árvore e, sempre sorrindo, regressa à terra molhada de onde desabrochou.

Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa